alfabeto

28.8.05

Fina dÀrmada


Insatisfação


Tanta palavra para dizer e que não digo
Tanto livro para ler e que não leio,
Tanta esperança para dar e que não dou

Tanta coisa, natureza, tanta coisa,
Tu puseste em mim para fazer e que não faço
Tanta flor para semear que não semeio
Tanta gente para abraçar que não abraço
Quero, crio e sonho
Mas a vontade não acompanha o pensamento.
Tanta noite para amar e que não amo,
Tanta coisa para saber e que não sei
Tanta desculpa de que nunca tenho tempo

Dá mais força às minhas mãos, ó natureza,
Há tanta história para escrever e que não escrevo,
Tanta ideia a defender que não defendo,
Tanto lugar para visitar que não visito.

Iguala as minhas mãos ao pensamento,
Torna a minha vontade mais veloz.
E tu verás, natureza, como consigo
Amar o meu amor como não amo,
Ler todos os livros que não leio
E dizer as palavras que não digo.


Fim-de-caso


Não contigo, mas comigo. Dizer adeus, encerrar, fechar o livro ou, pelo menos, virar-te a página.


24.8.05

Porque hoje é o aniversário dele:


Legado


Deixo aqui meu relógio, lavoura.
Deixo aqui meu cabide, minha náusea,
minha empresa de espantos, meus ais,
interjeições e trejeitos. Mea culpa.
Deixo meu detector de mágoas,
meu rio predileto de margens abstratas,
minha idéia de esconderijo
— que restou do furto
de pomares e palavras.
Deixo meu avô tangendo a noite
para as tocas da insônia, tangendo
rezas para o pasto de Deus.
Deixo a casca do impossível,
perfis, carcaças, asco.
Deixo tudo e algo mais
dos noves fora.
Aonde for, fique um nome ou ervas
que não me separo de mim,
que me acompanho sempre.
(Quem se afasta
é o que pensaram de mim, o outro
o porquê, o quando.
Não sou eu.)
Cumpro a sina sem asas.


André Ricardo Aguiar

leia mais André aqui.


19.8.05

Forough Farrokhzad


Mais Tarde


A minha morte chegará um dia
Um dia na primavera, luminoso e gracioso
Um dia de inverno, poeirento, distante
Um dia vazio de outono, desprovido de alegria.

A minha morte chegará um dia
Um dia doceamargo, como todos os meus dias
Um dia oco como o que passou
Sombra de hoje ou de amanhã.

Os meus olhos adaptam-se à penumbra dos pátios
As minhas faces parecem frio, pálido mármore
Subitamente o sono arrasta-se sobre mim
Livro-me de todos os gritos dolorosos.

Lentamente minhas mãos deslizam sobre anotações
Que chegaram até mim debaixo do feitiço da poesia,
Relembro que outrora em minhas mãos
Retive o sangue flamejante da poesia.

A terra convida-me para os seus braços,
As gentes reúnem-se para me sepultar aqui
Talvez à meia-noite os meus amantes
Coloquem sobre mim coroas de muitas rosas.

tradução: Vasco Gato.


Fluido


O que se dizia amor se nos escorria dentre os dedos que, entrelaçados, mal percebiam o quanto o amor de amor se esvaziava.


12.8.05

Um breve retorno à letra C:


Da Finitude


Leva dos meus olhos a noite que inda resta,
A última sessão do filme, o último a sair da festa,
A última parede erguida, o derradeiro altar,
A última cantiga feita para nos ninar,
Lava essa casa de tudo o que não presta,
Risca os meus livros, abre em mim uma fresta,
Por onde vaze o sangue que te vai nutrir,
O sangue, a tez vermelha, o batom, rubi.
Na ânsia de aliviar a dor,
Deita nessa grama e faz o sol se pôr,
Que eu vou dormir um pouco o que sobrar de ti.
Leva dos meus lábios a morte que se expande,
A água que me enche os olhos, há água onde quer que eu ande,
Há água que corrompe a pedra, a água te esculpe o luar,
A água no final do filme vai nos afogar,
Limpa esse corpo de tudo que inda cheira,
Machuca minha língua e, feito sexta-feira,
Faz de cada encontro o que nos entristece,
Os dentes cor de nada, e entre os dentes, preces,
Na hora de atiçar a dor,
Deita nessa grama e eu deixo o sol te pôr,
Enquanto eu amo aos poucos teu apodrecer.
Leva dos meus olhos a noite que começa,
Que tudo que termina é assim, sem muita pressa.


Celso Boaventura

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9.8.05

Fernanda de Castro


Eu tenho asas!

Piso o chão como pisa toda a gente
mas tenho asas
de impalpável tecido transparente,
feitas de pó de estrelas e de flores.
Asas que ninguém vê, que ninguém sente,
asas de todas as cores.
Pequenas asas brancas que me afastam
das coisas triviais
e as tornam leves, fluídas, irreais
— polén, nuvem, luar, constelações,
irisados cristais.
Asa branca minha alma a palpitar,
bater de asas o doce ciciar
de pálpebras e cílios.
Ó minhas asas brancas de cetim!
Revoadas de pássaros meus sonhos,
Meus desejos sem fim!


Fuga


Noite, chuva, Bach, o violino, um tempo longe: você?


3.8.05

Fabrício Carpinejar


As cartas de amor
deveriam ser fechadas
com a língua.
Beijadas antes de enviadas.
Sopradas. Respiradas.
O esforço do pulmão
capturado pelo envelope,
a letra tremendo
como uma pálpebra.
Não a cola isenta, neutra,
mas a espuma, a gentileza,
a gripe, o contágio.
Porque a saliva
acalma um machucado.

As cartas de amor
deveriam ser abertas
com os dentes.


Fútil?


— Para que repetir que te amo, trazer flores, ligar no meio da tarde, essas bobagens?
— Porque me faz feliz.