alfabeto

15.2.12

Mário Domingos


ANIVERSÁRIO XXV

Acordei um dia dentro dos teus olhos
de um sono leve e tranquilo, tumultuoso e denso.
Dizem que devo ter sonhado, mas nem ecos
de palavras, franjas de luz, neblina,
vaga escadaria, túnel infinito
me chegam aos recantos da memória.

Acordei a amar-te dentro dos teus olhos,
a hora indefinida,
em silêncio, deslumbrado.

Só depois veio o sonho.

1.2.12

Lúcio Cardoso



Único Poema de Amor


tudo tão calmo
a vida dormindo
como agora que tombasse sem murmúrio
na planície do meu pensamento ...
folhas mortas que não voam,
pássaros imóveis que não cantam,
água parada que não corre ...


e teu corpo como um lírio sobre a terra,
e a terra muda impregnada de perfume,
teus olhos grandes como flores noturnas,
flores que se abrem na doçura do silêncio
e minha sombra como uma nuvem perdida
debruçada sobre teus cabelos imóveis
que bóiam na água da planície...

19.1.12

Rui Costa

Autobiografia


Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos - ,
Ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
O: navio:no:mar:parado:parado: completamente.
Parado.como dizer? Não dizer, eu sou.uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.



11.1.12

Ingig Jonker





The child is not dead
The child lifts his fists against his mother
Who shouts Afrika ! shouts the breath
Of freedom and the veld
In the locations of the cordoned heart


The child lifts his fists against his father
in the march of the generations
who shouts Afrika ! shout the breath
of righteousness and blood
in the streets of his embattled pride


The child is not dead not at Langa nor at Nyanga
not at Orlando nor at Sharpeville
nor at the police station at Philippi
where he lies with a bullet through his brain


The child is the dark shadow of the soldiers
on guard with rifles Saracens and batons
the child is present at all assemblies and law-givings
the child peers through the windows of houses and into the hearts of mothers
this child who just wanted to play in the sun at Nyanga is everywhere
the child grown to a man treks through all Africa


the child grown into a giant journeys through the whole world
Without a pass





20.12.11

António Ramos Rosa


A Palavra


A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.

22.11.11

Marcílio Medeiros

Taturana

A mão plana,
passeia calor.
Muda cor,
forma, peso.
Levanta caravana
de pelos
pelo leito seco
do peito
que arqueia, lento
rolar de roldanas,
pontas de dedos:
antenas, pernas,
penas: taturana,
e anseia o vento,
o pentear de
capim, cana.

22.10.11

Joaquim Pessoa


[Quero-te para além das coisas justas]



Quero-te para além das coisas justas
... e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.