alfabeto

29.11.04

David Mourão Ferreira


Seria Outono aquele dia.


Mas quem diria ser Outono
e tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono... Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)
E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...
Mas o teu seio é que não quis:
tremeu demais sob o meu rosto...
Seria Outono aquele dia,
nesse jardim doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.


Descaso


Cansado de mendigar amor, emudeceu. Aos poucos, tornou-se transparente, diáfano. Até que desapareceu. E ninguém, absolutamente ninguém, o percebeu.

25.11.04

Deborah Brennand


O caminho do homem com a moça


Chega mais perto
vê — são braceletes
anéis de ouro e pérolas
para ornarem o teu ser

longínquo.

Volta, recebe as tâmaras
as mais doces do meu deserto
que se une calado à relva
sem medo, sem pedras,

chega mais perto.

Deixei no minarete branco
uma águia vigiando
e no pátio, soltos, os cães
rastejam passos e sombras.

Só não posso te dizer o meu nome.

Abraça-me.

Ela não respondeu, foi adiante.


Dúbio


Das palavras que tu dizes, umas me dizes com a voz, outras com as mãos, outras com os olhos. Em quais devo acreditar?



19.11.04

Daniel Maia-Pinto Rodrigues


Pouco depressa


falo-te de chuva
como quem diz que as minhas mãos
não se exaltam em revisitar-te o peito


revejo todos os verdes
no peppermint do meu cálice
enquanto a janela abro
pouco depressa
sobre a tarde


falo-te de cansaço
como quem se sentasse
numa poltrona de lã


Devaneio


Coisa de louco: andar na chuva e ser sol.



13.11.04

Dora Ribeiro


O vinho do porto da minha avó
era lágrima de cristo
remédio propriamente santo
guardaddo a sete chaves
e oferecido sob grande tensão

a cristaleira mais parecia um sacrário
disposta no centro da sala de jantar
atría todos os olhos que por ali passavam
a sua madeira escura
e o rendilhado das portas
eram como um aviso a dizer:
delicadeza não é só intuição.


Desterro


Fogão a lenha num canto, frio, aquece além da lembrança?



8.11.04

Dylan Thomas


E a Morte Não Irá Se Impor


E a morte não irá se impor
Quando já nus os mortos cuja ossada
Se une a quem vai no vento ou sobrenada
Ao luar ocidental não forem nada,
Estrelas brilharão em seu redor;
Hão de ser sãos mesmo se insanos antes
E salvos mesmo sob o mar e amantes
Mesmo os que nada mais são salvo amor;
E a morte não irá se impor.

E a morte não irá se impor.
Tampouco ao soçobrar foi-se assombrado
Quem jaz no mar sombrio nem foi malgrado
Só sobrem rotos seus tendões dobrado
Na roda e nos tormentos da tormenta;
Se a fé nas mãos desdobra-se e conforme
Irrompe tal desastre que unicorne
Rompe-o de cima a baixo, ele se aguenta;
E a morte não irá se impor.

E a morte não irá se impor.
Não que ouçam mais gaivotas a gritar
Ou rebentando costa afora o mar
Mas onde já floriu se ora ao azar
Da chuva nem há flor, mesmo se for
Cinzas às cinzas tudo que eram, cada
Feição deles aflora cinzelada
Ao sol enquanto houver sol numa flor,
E a morte não irá se impor.

tradução: Nelson Ascher.

Desamparo


Entre o veneno e a vida, poucos minutos, alguns amigos, nenhuma paz e um enorme abismo.


4.11.04

Casimiro de Brito


Do poema


O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.


Caligrafia


Desenhas pássaros em meu rosto. Reinventas o contorno da minha boca e a cor dos meus olhos. Com o dorso da tua mão. Quando me tocas. Levemente. Lentamente. Num eu te amo inscrito e repetido mil vezes. Desde sempre. Silenciosa e cuidadosamente.


1.11.04

Cora Coralina


Coração é terra que ninguém vê


Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão.

Coração é terra que ninguém vê
— diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
— teu coração.

Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...


Cantar?


Como, se os dias passam, a morte grassa e o coração é mudo?