Um breve retorno à letra E:
S O N E T O
Sou neto das tempestades
que sopram pelos desertos
um destino de saudades.
Com seus nós quase desfeitos
eu trago a garganta aberta
escancarada vazando
uma voz suja de terra
que filtra os dias e as noites.
Na ponta de minha língua
o tempo acaba ou começa?
Brota em mim o som da flauta
brota mais — a flor do sangue —
ao sol que queima sem pena
nesse deserto tão grande.
Elizabeth Hazin
Jacineide Travassos
Natureza Móvel com Peixes VermelhosO mundo faz-se do olharespaços sugeridos pela diagonalplanos sem volumedissolvem-se na memória As mãos lentamenteerguem a escritura das ondas O olhar afoga-sepor entre o anil do céue o musgo das árvorescompõe-se o quadro dos amantesnavega-se sobre as águas do arplumas semeadas de olhosO navio alça-se pássarolança-se em águas etéreasa âncora faz-se ânforaos corpos entrelaçam-sena trilogia do sonoro do diáfano do móbilna ânsia do toqueos olhosmergulha-os no aquáriocom peixes vermelhosleia mais Jacineide aqui.
Joaquim Cardozo
Tarde no RecifeTarde no Recife. Da ponta Maurício o céu e a cidade. Fachada verde do Café Máxime. Cais do Abacaxi. Gameleiras. Da torre do Telégrafo Ótico A voz colorida das bandeiras anuncia Que vapores entraram no horizonte.
Tanta gente apressada, tanta mulher bonita. A tagarelice dos bondes e dos automóveis. Um carreto gritando — alerta! Algazarra. Seis horas. Os sinos. Recife romântico dos crepúsculos das pontes. Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses. Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas, Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas do Pacífico. Recife romântico dos crepúsculos das pontes. E da beleza católica do rio.
José Carlos Ary dos Santos
A Máquina Fotográfica
É na câmara escura dos teus olhosque se revela a águaágua imagemágua nítida e fixaágua paisagemboca nariz cabelos e cinturaterra sem nomerosto sem figuraágua móvel nos riosparada nos retratoságua escorrida e puraágua viagem trânsito hiato.Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.Já suei o suor de oito séculos de maro tempo de onze meses de ordenado;por isso, meu amor, viajo a nadonão por ser português mal empregadomas por sofrer dos pése estar desidratado.Chego. Mudo de fato. Calço a idadeque melhor quadra à minha solidãoe saio a procurar-te na cidadecontrastada violenta negativatu única sombra murmuradaúnica rua mal iluminadaúnica imagem desfocada e viva.Moras aonde eu sei.É na distânciaonde chego de táxi.Sou turistacom trinta e seis hipóteses no rolo;venho ao teu miradoiro ver a vistatrago a minha tristeza a tiracolo.Enquadro-te regulo-te disparo-terevelo-te retoco-te repito-tecompro um frasco de tédio e um aparonas tuas costas ponho uma estampilhae escrevo aos meus amigos que estão longecharmant pays the sun is shininglove.Emendo-te rasuro-te preencho-teassino-te destino-te comando-teés o lugar concreto onde procuroa noite de passagem o abrigo seguroa hora de acordar que se diz ao porteiroo tempo que não segue o tempo em que não durosenão um dia inteiro.Invento-te desbravo-te desvendo-tesurges letra por letra, película sonora,do sendo à vogal do tema à consoantesem presença no espaço sem diferença na hora.És a rota da Índia o sarcasmo do ventoa cãibra do gajeiro o erro do sextanteo acaso a maré o mapa a descobertadum novo continente itinerante.
Jorge Fernandes
Meu Poema Parnasiano Sem NúmeroLigo a chave propulsora dos meu nervosPra melhor sentir toda a emoção que me rodeia...Que vontade de produzir sonetos...Trancar-me nos quatorze versosE berrar sonoridades aos quatro ventosPra sensibilizar românticos...Mas o diacho do ganzá das ruas me perturba...Jazibande de uma figa! que doidiceDe vai-e-vem de overlandes, buíques e chevrolés...— Ô do cassetete — pára este clube carnavalescoQue estamos na quaresma! eu sou um grande poetaDe mil oitocentos e noventa e tantos...Trago de imaginação milhares de sextilhasE uma miríade de sonetos...Quero cantar os prós homens... fazer a apologiaDe Gutembergue — do incêndio de Roma — das aventurasDe Dom Quixote Passam bufando motocicletas e os bondes chiando as rodas nos trilhos...Carroças de gelo... pregões...Eu não compro jornais nem quero saber seLindembergue atravessou Neiorque-Paris — eu queroA placidez de um lago suíço — um céu de África — uma paisagem de Veneza.Mas a grande vida brasileira esbarra a inspiraçãodo pobre poeta que na sua terra tem palmeiraOnde nunca cantou o sabiá... ( Ele só canta no mufumbo e nas catingas...)