alfabeto

24.4.07

Mário de Sá-Carneiro


Quase


Um pouco mais de sol — eu era brasa,
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz ? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão !
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...



17.4.07

Jeanne Araújo


Fome


Colaram-se em mim
uma fome antiga de palavras
e uma sede assoberbada de cantigas.
O meu desejo seria par de asas
coladas aos meus pés
e um carro de boi cantante
selado à minha língua.
Porque de pó e terra escura
é a minha estrada
e eu tenho pressa de descobrir
o que há por trás
da tessitura.


7.4.07

Um breve e belo vôo à letra S:


Porque

Porque os outros se mascaram e tu não

Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos calados
Onde germina calada podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andresen