alfabeto

27.10.04

Camilo Pessanha


Vênus


II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
—Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuamente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
—Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desgastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


Cansaço


Sem estrelas, à noite, bastam-me vaga-lumes.



23.10.04

Charles Bukowski


Um poema de amor


todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.
suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-maridos.

principalmenteas mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.

há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas, não sei mesmo o que
fazer por
elas.

sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar – eu estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só
um aprendiz.

sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. Sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.

Algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem. Outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todos têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.

essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e acarência me
sustentaram, me
sustentaram.

tradução: Jorge Wanderley


Cicatriz


: e por mais que refizessem gestos e caminhos, e todas as palavras reinventassem, um tênue ponto opaco persistia na imensidão daquele azul. A olhos leigos, invisível. Aos dela, infelizmente, não.

18.10.04

Consuelo Tomas


Da propensão a perder as chaves

Tenho perdido muitas chaves pela vida.
A chave do êxito extraviou-se num século
cujas chaves não decifro neste pentagrama
de louca transcendência.
A da felicidade caiu no mar dos absurdos
e meu escafandro estava cheio de furos.
A do conhecimento está em algum lugar
que não sei precisar
buscá-la é ofício do vigia
que faz a barba em minha pupila.
A da imortalidade pesava tanto
tive que desfazer-me dela
para seguir vivendo.
A do teu coração profundo e espesso
só abria duas de suas sete portas.
A única chave que conservo
preserva minha inocência
em algum lugar da caixa do corpo.
Só para não perdê-la
Escrevo versos.


tradução: Aníbal Beça.


Chet


Como pode um trompete desvendar — impudente e impunemente — os caminhos mais secretos dos meus versos nesse imenso e emaranhado labirinto que é o sentir?


14.10.04

Czeslaw Milosz


Não mais


Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e porque
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.

Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se abotoa.
Ao menos assim como as viu o dono da galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambre o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.

tradução: Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza.


Como se fosse a primavera


Às seis da tarde, a lua nascia cheia despertando jasmins em meu vestido. E o mar floria de estrelas nossos pés.



10.10.04

Cacaso


Jura

minha boca sopra no vento: eu te
amo eu te amo

uma navalha corta em dois meu coração


corrente


mônica amava átila que amava ana que amava átila que amava mônica sabendo que amava ana e que amar mônica não deveria. bruno amava sílvia e amava marta que amava bruno e amava lauro que amava marta que pensava em clóvis que amava alguém mas quem não se sabia. talvez fosse marta.


6.10.04

Carlos Queiroz


Quando se veste a roupa do avesso


Por tudo o que me deste:
– Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
– Obrigado! Obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
– Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: – Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

roubado daqui.


Ciúme?


Vez por outra, dos teus versos. E de tuas mãos, longe de mim, ao me acenares adeus.


2.10.04

Cassiano Ricardo


Dança viciosa

1

Sob cada máscara
um enigma-estigma.

O tempo e o modo
da folhinha verde
na parede

O amanhã ainda vir-
gem, a
flor
da origem:

O não saber onde
o primeiro homem
nasceu,
Zebedeu, na Lua:
Orfeu, na rua.

2

Desde sua nudez
paradisíaca
uma más-
cara após
outra:

a folha da par-
ra;
a tampa da
campa

E um perguntando
ao outro:
Você me
conhece?

Com destino


Bala sabe que peito fere. Faca, também. Dor, não. Mente.