alfabeto

28.9.04

Chacal


uma gargalhada num canto da sala
nervosa
de unhas roídas
estalou e rolou
nos aposentos
como se a alegria
tivesse sido convidada
mas não foi.

é que houve um malentendido.

Crise


Olhar para trás. Voltar sobre os próprios passos. Perder-se. E recomeçar.

22.9.04

Carl Sandburg


Quanto?


— Quanto me amas? Um milhão de alqueires?
— Oh, muito mais que isso, oh, muito mais.

— E amanhã? Talvez meio alqueire?
— Amanhã talvez nem isso.

— É esta, então, a aritmética do teu coração?
— Não; é o modo como o vento mede o tempo.

tradução: Jorge Wanderley

Cravos


Mandar-te-ei uma braçada de cravos — amarelos e vermelhos — para que, antes do fim, percebas que mesmo o mais imenso amor não é eterno.

18.9.04

Cyana Leahy


Análise


meu freudiano analista
precisa de avalista
tem que ser analisado
nunca foi à telefônica
tentar se comunicar
falar de pé na cabine
cercado dos olhos do mundo
nunca o rubor na face
exibiu o seu impasse
no centro desta cidade
nunca correu até o balcão
para comprar mais cartão
na telefônica central

meu freudiano analista
nunca ficou até tarde
esperando a mensagem
com instáveis promessas
vindas dos mares de Marte
e mudanças de humor
da meteorologia
nem comprou roupa preta
para clarear o amor

meu freudiano analista
nada sabe
da gruta quente
da pira ardente
no amor de final de século

Co-autoria


Eu te amo, disse baixinho, pensando que ele dormia. Fingia, o danado. Esperou que eu adormecesse, virou-me de costas, baixou a alça da camisola e me escreveu, com a língua, o mais belo poema de amor que alguém já escreveu. O que dizia? Não sei. Como ele, pouco antes, eu também dormia.

14.9.04

Carlos Edu


Dora


invento um jeito prego-o em ti feito acessório
boneca bicho-cadela de ponta de estrada
teus olhos são jabuticabas temporãs

menina-flecha fecha em mim toda lambança
melado beijo gritos e tranças
invade meus membros e bocas em dia de fogueira

teu vestidinho vermelho refletido nos paralepípedos
pé descalço panturrilha perfeita
só te aquieta na ponta dos meus dedos
ancas frágeis que no meu peito deita

Dora adora o jeito que a cativo
frutas sabor riachos capim e grutas
Dora me mantém sempre ativo
nas suas noites
no seu sexo
na sua carinha de puta

Cansaço


E havia ainda a insônia. Angústia de não dormir. Ou de fingir querer e driblar o sono. Depois de tantos dias — perdera a conta — já não sabia ao certo se o que o cercava, o que via era real. Ela, a estrada, o carro, a chácara, de vera, existiriam?

11.9.04

Cecília Meireles


Canção Excêntrica

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
projeto-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
— saudosa do que não faço,
— do que faço, arrependida.

Ceciliar


Tente, ele disse. É simples: são dez versos com sete sílabas e rimas em a b a b b a a b a b. Eu ri, avessa a rimas que era. Mas fizemos um pacto: vez em quando, eu escreveria com métrica e rima e ele, por sua vez, aportaria na praia do verso livre, que era a minha. E foi assim que aprendi a ceciliar.

para Antoniel Campos , que me ensinou a ceciliar, com um beijo.

7.9.04

Cida Pedrosa


milena


gosto quando milena fala
dos homens
que comeu durante a noite

é a única voz soante
nesta cantina de repartição

onde todos contam:
do filho drogado do preço do pão
do sapato carmim, exposto na vitrine
da rua sicrano de tal do bairro
de casa amarela
onde você pode comprar
e começar a pagar apenas em abril

sem a voz de milena
o café desce amargo

Carma


Os mistérios gravados nas palmas das minhas mãos revelam-se — despudoradamente — nas linhas das tuas.

3.9.04

Carlito Azevedo


Nova Passante

1- sobre esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
— sem esquecer entanto a boca:
um ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)

2- talvez
um poeta afogado num
danúbio imaginário
dissesse que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
— mas eu que venero (mais que o ouro
verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos,
sei que tua pele pálida de papel
pede palavras
de luz

3- algum
mozárabe ou andaluz
decerto
te dedicaria
um concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)

Coisas do sentir


O que os olhos não vêem, o coração não sente, dizia, sábia, a avó. O problema é o cheiro...