alfabeto

28.8.04

Carlos Pena Filho


Soneto do Desmantelo Azul

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Carlos


Foram dois nossos momentos: o choro dos meus pais à sua morte, precoce e súbita, quando eu tinha nove anos — tempos cinzentos — , e o sorriso com que decerto me envolveu, quando, muitos anos depois, descobri sua poesia. Desde então, somos parceiros e cúmplices. E nunca mais o azul me abandonou.


25.8.04

Berilo Wanderley


Canto último

E um dia, quando eu nada for,
quando o brilho dos meus olhos, vazando, se diluir na terra,
e os vermes corromperem meus lamentos
e prostituírem meus melhores pensamentos;
nesse dia, quero que digas
que ao menos para ti eu fui um bom.
E que meus olhos sempre te ofertavam cantigas
quando, nas tardes, vinhas vaidosa dos pecados que me trazias.
E beijavas minhas lembranças boas e más em minha fronte.
E diluías teu sorriso em minha boca.
Depois, teu corpo brotava dos meus dedos,
e respiravas, então, profundamente...


Dize, e minha sombra não se abrirá em cruz nas estradas nuas.
Dormirá tranqüila, apascentando os seus próprios pecados.
Dize, e o ermo do meu chão,
onde minha palavra se tornará pedra
e meu riso se fará lodo,
será menos ermo e será menos chão.

Bricabraque


Uma mesa trôpega, dois tamboretes. Um fogão de duas bocas, a querosene. Um abajur remendado, uma estante improvisada com tijolos e cimento. Alguns livros. Muitos discos. Um aparelho de som super-moderno. O vento soprando lá fora. A gente se amando cá dentro.


23.8.04

Bento Nascimento


Nadaverismo

O centro do universo era a minha casa
e o átomo menor
era o botão de osso da minha
camisa azul.

Havia menor ainda
dois furinhos de meu botão:
eu entrava por um
saía por outro.

Certa vez, ao entrar numa dessas cavidades
eu encontrei o meu umbigo.
Só daí descobri
o quanto eu deixei de viver.

Bobagens


Eu te amo, sabia? Ela riu. Sabia. E sabia também que não era verdade. É verdade, sim, pode acreditar. Mas eu não disse nada, respondeu ainda rindo. Mas pensou, ele disse. Um leve silêncio se fez em ambos os lados da linha. Quebrado apenas pelo sinal de que o tempo da ligação se esgotava e pela voz dela, no último instante dizendo: também amo você. Pode acreditar.

20.8.04

Beatriz Novaro


Mulher gorda na janela

Não há pressa em seus olhos,
apenas o costume de estar só.
Seu olhar fixa as marcas que deixam os coches,
atenta em vãos
ao que falta.
Apóia seu rosto no vidro frio
e repousa.
Olha suas mãos redondas, pequenas,
toca em seus seios grandes e quentes,
pensa em seus pés e sorri maternalmente.
Corpulenta e doce como uma boa sopa,
murmura,
e no entanto está só.
Sabe que está fora mas não sabe de quê.
Ninguém percebe a sua paixão
pesada e gorda na janela.

tradução: Ana Thereza Vieira

Bandoneón


Ouvi a porta da frente bater atrás de mim. E me vi na rua: noturna, deserta e fria. À minha frente, cortinas balançavam de janelas inexistentes. E ela, que me sei ser proibida, com um sorriso, convidava-me. À sua cama, não à sua mesa. Malévola, sorria, enquanto, entre atônito e temeroso, eu hesitava. Tudo se passava ali, à noite, sob o lampião de gás amarelo. No meio da rua escura, deserta e fria. Por trás das janelas fechadas, alguém ouvia Piazzola.


17.8.04

Boris Pasternak


Aurora

Estavas por inteiro em meu destino.
Depois veio com a guerra o malefício,
e mais de ti não soube, oh desengano!,
sequer uma palavra, uma notícia.

Passou-se muito tempo, mas agora
a tua voz abriu minha ferida.
Leio tua palavra noite afora,
e venho de um desmaio para a vida.

Quero buscar no vigor matutino
a multidão: com ela confundir-me.
Estou pronto a disseminar ruínas,
pôr de joelhos a todos, inermes.

Eu desço apressadamente as escadas
e vejo ao meu redor ruas abertas,
e tanta neve cobrindo as calçadas,
como a primeira vez, nuas, desertas.

Se muitos bebem chá em salas claras,
outros seguem os bondes, apressados.
Dentro de alguns minutos, sem demora,
mal se conhece o rosto da cidade.

E tece o vento norte nos portais
uma teia de flocos condensada.
E, para não chegar tarde demais,
muitos deixam o chá pela metade.

Tamanho sofrimento me comove,
como se tanta dor em mim coubera,
pois também me dissolvo como a neve
e movo as sobrancelhas com a aurora.

Gente sem nome está junto de mim,
são árvores, meninos, sedentários.
Sou vencido por todos, pois assim
me reconheço pronto na vitória.

tradução: Marco Lucchesi

Balas


Desde menino, colecionava balas. De toda forma, sabor ou cor. Se bem que preferia as azedinhas, quase amargas. Hoje, prefere outras balas. Que ferem. Que matam. Supõe serem amargas. Mas espera nunca provar-lhes o sabor.



13.8.04

Beatriz Amaral


Tecido

Asa de poema - anzol
para fisgar
na mesa uma linha

um fio grafado de corda
cortes-recortes
a tessitura do nó

e a lâmina de Urano
faz da legenda de
papiro etéreo: foz

move-se a areia na vertigem:
duna

dali se extrai o néctar
de pedra

pêndulo e farol
hipótese de concha
e tempo


Beatriz


Nem bela, nem atriz. Beata, tampouco. Um retrato desbotado na parede. E um soneto esquecido num caderno. Aberto e roto.



11.8.04

Boris Vian


Se os poetas fossem menos bestas

Se os poetas fossem menos bestas

E se fossem menos perigosos
Fariam todo mundo feliz
Para poderem tratar em paz
De seus sofrimentos literários
Levantariam casas douradas
Cercadas por enormes jardins
E árvores cheias de colibris
De rustiflautas e de aqualises
De pardongros e luziverdes
De plumuchas e de picapratos
E de pequenos corvos vermelhos
Que soubessem tirar nossa sorte
Haveria grandes chafarizes
Jorrando luzes de mil matizes
Não faltariam duzentos peixes
Do crocantusco ao empedraqueixo
Do trilibelo ao falamumula
Da suazmina ao rara quirila
E do guardavela ao canifeixe
Provaríamos um ar fresquíssimo
Perfumado pelo odor das folhas
Comeríamos quando quiséssemos
E trabalharíamos sem pressa
A arquitetar escadarias
De formas nunca dantes sonhadas
Com tábuas raiadas de lilás
Lisas como só ela sob os dedos
Mas os poetas são muito bestas
Para começar, eles escrevem
Ao invés de por a mão na massa
Isso lhes traz profundos remorsos
Que levam consigo até a morte
Radiantes por sofrerem tanto
O mundo os aclama com requinte
E os esquece no dia seguinte
Se a preguiça não fosse mania
Teriam fama por mais um dia.

tradução: Ruy Proença

Blefe


Uma entrelinha para cada frase. Em cada palavra, um duplo sentido. Algumas promessas falsas. Uma alegria. Um buquê de ironia. Um verso escondido por trás das mãos, por trás dos olhos. Um ser feliz. E um riso...


7.8.04

Bento Teixeira


Descrição do Recife de Pernambuco

Para a parte do Sul onde a pequena
Ursa se vê de guardas rodeada,
Onde o Céu luminoso, mais serena,
Tem sua influição, e temperada,
Junto da nova Lusitânia ordena,
A natureza, mãe bem atentada,
Um porto tão quieto, e tão seguro,
Que para as curvas Naus serve de muro.

É este porto tal, por estar posta,
Uma cinta de pedra, inculta, e viva,
Ao longo da soberba, e larga costa,
Onde quebra Neptuno a fúria esquiva,
Entre a praia, e pedra descomposta,
O estranhado elemento se deriva,
Com tanta mansidão, que uma fateixa,
Basta ter à fatal Argos aneixa.

Em o meio desta obra alpestre, e dura,
Sua boca rompeu o Mar inchado,
Que na língua dos bárbaros escura,
Paranambuco, de todos é chamado
De Paraná que é Mar, Puca - rotura,
Feita em fúria desse Mar salgado,
Que sem no derivar cometer míngua,
Cova do Mar se chama em nossa língua.

in, Prosopopea, 1601.


Boreal


Uma voz inesperada ao telefone e uma cortina de luzes a bailar no céu.



6.8.04

Arthur Rimbaud


Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncio assombrados de anjos e universos;
- Ó! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!


tradução: Augusto de Campos


Arco-íris


Todas as manhãs, bem cedo, banho-me em arco-íris, quando o sol me invade a janela, mergulhando na água do chuveiro. Exceto em algumas manhãs de inverno, quando, distante e friorento, o sol dormita, preguiçoso, até mais tarde.


5.8.04

Affonso Romano de Sant'Anna


Assombros

Às vezes, pequenos grandes terremotos

ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos já me viram
remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.


Amém



Despir cicatrizes e mágoas. Desfazer-se de dores. Os sonhos perdidos? Sonhar muitos outros. E partir, livre, prenhe de vida. Amores desfeitos, novos amores.

para Raquel e para Flávio, com carinho


2.8.04

Alexandre O'Neill


Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos


Assombração


Noite alta, ouvia ruídos de correntes e assobios, galopes de cavalo. Janelas e portas se abriam e ele entrava: o ausente. Deitava sobre mim e me amava. Calma e ardentemente. Às vezes, depois, conversava. Às vezes, a meu lado, simplesmente adormecia. Para partir, Romeu efêmero, ao canto da primeira e inexistente cotovia. Invariavelmente.



1.8.04

Alberto da Cunha Melo


Confluências

Não te amo contra Maria,
contra Tereza;
contra Luzia;
eu te amo amando
todas as Marias
todas as Terezas
todas as Luzias
que moram em ti;
eu te amo
a favor de todas
que não amei
como a ti;
eu te amo amando
as duzentas Marias,
as trezentas Terezas,
as quatrocentas Luzias
que moram em ti.


Assim


Que seja leve, ainda que breve como um fremir de asas no horizonte. Que seja bom. Que seja belo. Que seja amor.